"E sem dúvida o nosso tempo...prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser... "(Feuerbach)
O objetivo deste ensaio é aproximar a obra do escritor irlandês de língua inglesa Oscar Wilde com a obra do escritor brasileiro Machado de Assis.
Para este feito iremos comparar o romance: "O Retrato de Dorian Gray" (Oscar Wilde); com o conto "O Espelho" (Machado de Assis). E nosso foco vai de encontro onde as duas obras de confrontam: "O Narcisismo" embutido em ambos os personagens centrais: Dorian Gray e Jacobina.


Para dar continuidade em nosso ensaio, daremos uma pequena apresentação do tema "Narcisismo". Lógico que não podemos abrir mão do mito de Narciso.
O Mito de Narciso
Assim a ninfa passeava por um bosque quando viu Narciso que perseguia a caça pela montanha. Como era belo o jovem, e como era forte a paixão que a assaltou! Seguiu-lhe os passos e quis dirigir-lhe a palavra, falar o quanto ela o queria... Mas não era possível - era preciso esperar que ele falasse primeiro para então responder-lhe. Distraída pelos seus pensamentos, não percebeu que o jovem dela se aproximara. Tentou se esconder rapidamente, mas Narciso ouviu o barulho e caminhou em sua direção:
- Há alguém aqui?
- Aqui! - respondeu Eco.
Narciso olhou em volta e não viu ninguém. Queria saber quem estava se escondendo dele, e quem era a dona daquela voz tão bonita.
- Vem - gritou.
- Vem! - respondeu Eco.
- Por que foges de mim?
- Por que foges de mim?
- Eu não fujo! Vem, vamos nos juntar!
- Juntar! - a donzela não podia conter sua felicidade ao correr em direção do amado que fizera tal convite.
Narciso, vendo a ninfa que corria em sua direção, gritou:
- Afasta-te! Prefiro morrer do que te deixar me possuir!
- Me possuir... - disse Eco.
Foi terrível o que se passou. Narciso fugiu, e a ninfa, envergonhada, correu para se esconder no recesso dos bosques. Daquele dia em diante, passou a viver nas cavernas e entre os rochedos das montanhas. Evitava o contato com os outros seres, e não se alimentava mais. Com o pesar, seu corpo foi definhando, até que suas carnes desapareceram completamente. Seus ossos se transformaram em rocha. Nada restou além da sua voz. Eco, porém, continua a responder a todos que a chamem, e conserva seu costume de dizer sempre a última palavra. Não foi em vão o sofrimento da ninfa, pois do alto, do Olimpo, Nêmesis vira tudo o que se passou. Como punição, condenou Narciso a um triste fim, que não demorou muito a ocorrer.
Havia, não muito longe dali, uma fonte clara, de águas como prata. Os pastores não levavam para lá seu rebanho, nem cabras ou qualquer outro animal a frequentava. Não era tampouco enfeada por folhas ou por galhos caídos de árvores. Era linda, cercada de uma relva viçosa, e abrigada do sol por rochedos que a cercavam. Ali chegou um dia Narciso, fatigado da caça, e sentindo muito calor e muita sede.
Narciso debruçou sobre a fonte para banhar-se e viu, surpreso, uma bela figura que o olhava de dentro da fonte. "Com certeza é algum espírito das águas que habita esta fonte. E como é belo!", disse, admirando os olhos brilhantes, os cabelos anelados como os de Apolo, o rosto oval e o pescoço de marfim do ser. Apaixonou-se pelo aspecto saudável e pela beleza daquele ser que, de dentro da fonte, retribuía o seu olhar.
Não podia mais se conter. Baixou o rosto para beijar o ser, e enfiou os braços na fonte para abraça-lo. Porém, ao contato de seus braços com a água da fonte, o ser sumiu para voltar depois de alguns instantes, tão belo quanto antes.

Suas lágrimas caíram na água, turvando a imagem. E, ao vê-la partir, Narciso exclamou:
- Fica, peço-te, fica! Se não posso tocar-te, deixe-me pelo menos admirar-te.
Assim Narciso ficou por dias a admirar sua própria imagem na fonte, esquecido de alimento e de água, seu corpo definhando. As cores e o vigor deixaram seu corpo, e quando ele gritava "Ai, ai", Eco respondia com as mesmas palavras. Assim o jovem morreu.
As ninfas choraram seu triste destino. Prepararam uma pira funerária e teriam cremado seu corpo se o tivessem encontrado. No lugar onde faleceu, entretanto, as ninfas encontraram apenas uma flor roxa, rodeada de folhas brancas. E, em memória do jovem Narciso, aquela flor passou a ser conhecida pelo seu nome.
E este fascínio pela imagem é visto no conto de Machado de Assis o "O Espelho":
A história de Jacobina (protagonista do conto) é curiosa: depois de ser nomeado alferes, a tia pede que ele a visite em sua fazenda e que não esqueça de levar a sua farda. Lá, todos os dias, Jacobina, veste a farda e se observa em um espelho antigo: " era a melhor peça da casa" . Em seguida a tia precisa se ausentar da propriedade . Os escravos aproveitam e fogem. Então, o alferes se vê sozinho. Fica nervoso, acabrunhado, como mal. Logo em seguida olha-se no espelho sem a farda e se assusta: enxerga uma figura "vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra". É a alma exterior, que para Jacobina se resume em uma farda de alferes. Privado dela, o protagonista não vive mais. Precisa dela. Precisa desta imagem para se encontrar no mundo. Segundo o crítico Antonio Candido, a força do conto "vem da utilização admirável da farda simbólica e do espelho monumental no deserto da fazenda abandonada, construindo uma espécie de alegoria moderna das divisões da personalidade e da relatividade do ser"...
-"O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade"

Quando o personagem Lord Henry afirma a Dorian que "o tempo tem-lhe inveja e faz guerra aos seus lírios e suas rosas". Em Dorian abre-se a mais dolorosa ferida do ser humano: a efemeridade de sua existência. Lord Henry é o personagem que trás a inquietação em Dorian.
Vocês devem está perguntando onde o Narcisismo entra na história.
Dorian Era um jovem como afirma Basil: "a bela aparência de Dorian Gray: são dons dos deuses" (pag.17)
Depois do retrato pintado, Dorian Olhou-o e:
"A noção de sua beleza dominava-o como uma revelação" (pag.35)
E assim como Narciso, Dorian encanta-se e se apaixona-se pela própria imagem, e em função da mesma passa a viver
Deseja viver para sempre com aquele rosto juvenil:
"-Que tristeza!- murmurou Dorian.- Que tristeza!- repetiu, com os olhos cravados na sua efígie- Eu vou ficar velho, feio, horrível. Mas este retrato se conservará eternamente jovem. Nele, nunca serei mais idoso do que neste dia de junho... Se fosse o contrário! Se eu pudesse ser sempre moço, se o quadro envelhecesse!... Por isso, por esse milagre eu daria tudo!Sim, não há no mundo o que eu não estivesse pronto a dar em troca. Daria até a alma!" (pag. 36)
E é o que acontece. Depois disso Dorian vive uma vida de libertinagem, cometendo todos os pecados. E:
"Estava cada vez mais enamorado da sua própria beleza, mais e mais empenhado em corromper a sua própria alma" (pag.123)
Dorian, pouco a pouco foi transformando. Foi perdendo a sua essência bela. Como nas palavras de Basil:
"-Que horror, Dorian! Alguma coisa o transformou completamente. Por fora, voce Ainda é o belo rapaz que, não faz muito, ia ao meu estúdio e posava diariamente para o seu retrato: um rapaz simples, afetuoso, sem afetação. A criatura mais inocente deste mundo. Agora, não sei o que lhe sucedeu. Fala como se não tivesse coração, como se desconhecesse a piedade. " (pag.107)
Não contaremos o final da história, para o interessados fica aqui uma dica de ótima leitura. Um livro imperdível!
Narciso, Dorian e Jacobina carregam em si uma atitude que praticamente todos os humanos possuem. A preocupação pela imagem. Uns até transformam essa preocupação em um orgulho. Vivem apenas pela imagem. O que importa é a aparência. A alma fica por segundo plano.
E realmente ainda vivemos na "Sociedade do Espetáculo" que um dia foi descrita pelo filósofo francês Guy Debord, onde este critica essa sociedade mediada por imagens;
"o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana -isto é, social- como simples aparência" (pag.16) e:
"Quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico" (pag.18)
E para finalizar nada mais intrigante do que a afirmação de Oscar Wilde no Prefácio da obra:
"...A alma é uma realidade terrível. Pode ser comprada,
vendida, barganhada, intoxicada ou aperfeiçoada.
Há uma alma em cada um de nós. Eu sei"