Este ensaio tem como objetivo aproximar a obra da escritora Clarice Lispector com a do escritor argentino Julio Cortázar, mostrando como ambos autores em suas respectivas obras trabalham a descrição.
Para este trabalho selecionamos o conto "As águas do mundo" (Clarice Lispector) e o capítulo 7 da obra monumental "Rayuela" de Julio Cortázar; traduzida para o português como "O jogo da amarelinha"
O jogo da amarelinha é dividido em três partes, pode ser lido de diversas formas. Cada leitor cria o seu próprio livro e ritmo. Nele o autor discute os questionamentos do homem diante de seu destino, conflitos, dúvidas e paixões. Uma das grandes obras literárias mundiais. Mas destacamos para o nosso estudo o capitulo 7 da obra em que o narrador descreve um simples beijo como um quadro que nos remete a infinitas sensações diante do momento. Vamos ao capítulo:
"Toco a sua boca com um dedo, toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se, pela primeira vez, a sua boca entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade, eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto, e que, por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que minha mão desenha em você" (...)
Agora Clarice:
"Aí está ele, o mar, o mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar.
Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.
Ela olha o mar, é o que se pode fazer. Ele só lhe é delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra"(...)
Julio Cortázar finaliza:
" Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõe-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem, com um perfume antigo e um grande silêncio. Então as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se estivéssemos com a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água".
E por fim Clarice:
"São seis horas da manhã. Só um cão livre hesita na praia, um cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porquê ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar.
Seu corpo se consola com sua própria exigüidade em relação a vastidão do mar porque é a exigüidade do corpo que o permite manter-se quente e é essa exigüidade que a torna livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio das seis horas. A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não têm o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de , não se conhecendo, no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem.
Vai entrando. A água salgada é de um frio que lhe arrepia em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal – a alegria é uma fatalidade – já a tomou, embora nem lhe ocorrera sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus mais adormecidos sonos seculares. E agora ela está alerta, mesmo sem pensar, como um caçador está alerta, mesmo sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda- e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido.
O caminho lento aumenta as coragem secreta. E de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda. O sal, o iodo, tudo líquido, deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo- espantada de pé, fertilizada.
Agora o frio se transformou em frígido. Avançando, ela sobre o mar pelo meio. Já não precisa da coragem, agora já é antiga no ritual. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol quase imediatamente já estão endurecendo de sal. Com a concha das mãos faz o que sempre fez no mar, e com altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheia de água, bebe em goles grandes, bons.
E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe com o sal, os olhos avermelham-se pelo sal secado pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto.
Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois não precisa mais. Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer. Quer ficar de pé parada no mar. Assim fica pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate. A mulher não recebe transmissões. Não precisa de comunicação.
Depois caminha dentro da água de volta à praia. Não está caminhando sobre as águas- ah, nunca faria isso depois que há milênios já andaram sobre as águas- mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe impõe resistência puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera.
E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água , e sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano".
Notamos em nossas leituras, que ambos os autores vão além da descrição como forma de caracterização de algo.
Julio Cortázar descrevendo a cena de um beijo faz invocar em nossas leituras a imagem de uma quadro que transcende até mesmo a leitura. Nos faz viajar ao ponto de perdermos no momento e já não sabemos se somos leitores, personagens ou se somos o próprio beijo. Uma coisa clara que acontece nessa leitura é que ao mesmo tempo que o narrador vai descrevendo o toque dos dedos na face do outro, nós leitores invocamos em nossas mentes sempre o rosto daquela que amamos... e a nossa mente semelhante um pintor, rabisca todos os traços buscando entre tantos outros rostos aquele perfeito...
Já Clarice Lispector em sua descrição carrega em torno de suas palavras questionamentos em que coloca o leitor como a mola impulsadora de tais provocações. Ao mesmo tempo em que a mulher se mistura ao mar, nós leitores somos carregados pela maré de suas palavras ao desconhecido, ao novo... E quando a mulher sai do mar e pisa na praia brilhando pelo sal, água e sol, todos os leitores são cobertos pela intensidade do mar de suas palavras que flui em nossas mentes... nos deixando a saudade de mergulhar ao desconhecido novamente.
Com essas últimas palavras trago para todos os leitores que compartilharam a leitura deste ensaio o seguinte propósito:
"descreva o desconhecido, busque o novo... e então saberemos que o novo sempre foi algo simples que nossos olhos cansados deixaram de observar.
Uma flor, um livro, uma amizade, um instante qualquer que passou frente a nossa falha percepção, pode ser sempre algo novo é surpreendente...
Como????
Tente descrever de forma não objetiva e nem subjetiva... Mas de forma viva, e, então verás um novo em ti!!!